domingo, 28 de junho de 2009

LUTOS E PERDAS - a propósito da comunicação de M. Rosário Belo

Quero deixar aqui o meu agradecimento à colega Rosário Belo, que nos apresentou uma maravilhosa comunicação neste último sábado, no âmbito das actividades da AP.
Tratou-se de um trabalho denso e comovente, no meu entender, e que devia ser relido com cuidado. Gostava de ter acesso ao paper, se for possível, no site da AP, por ex. em pdf - ou por mail.
Lutos e perdas são coisas muito complicadas e que suscitam os terrores mais primários. Só uma hora depois, ao volante do meu carro (que não é um Chevrolet nem eu ia pela estrada de Sintra como no poema de F. Pessoa, mas parecia...), percebi que o medo que sentira ao ouvir a comunicação tinha a ver com o medo da loucura ou, se quisermos, o da perda da razão. Trata-se de um assunto com o qual nos debatemos neste momento (o "nós" é uma paciente e eu), talvez daí a minha sensibilidade acrescida.
Talvez a Rosário queira também elaborar um pouco sobre essa outra perda horrível, a de nós mesmos.
Clara Pracana

domingo, 31 de maio de 2009

VIVER NO ESTRANGEIRO AUMENTA A CRIATIVIDADE?

Parece que sim, de acordo com um estudo que envolveu centenas de estudantes e que foi publicado no Journal of Personality and Social Psychology.
O estudo vem referido no Ecomomist (uma excelente revista, aliás) e refere a correlação entre viver, ou ter vivido, no estrangeiro e a criatividade das pessoas e as suas competências relacionais. Parece, no entanto, que viajar não chega. É preciso viver mesmo fora. O estudo não envolveu estudantes portugueses, para quem suspeito que a correlação seria ainda maior. Este santa terrinha nunca foi chão que desse muitas uvas. É tudo muito tacanho e pequenino.
Interessante, não?

Clara Pracana
Nota: os meus posts neste blog, como em outros, são da minha inteira
responsabilidade, e não obrigam mais ninguém.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

IN MEMORIAM JOÃO BÉNARD DA COSTA (1935-2009)


Morreu João Bénard da Costa, homem de uma imensa cultura e que ensinou gerações a ver cinema.
Escrevia, além disso, muitíssimo bem. Tenho religiosamente guardadas as suas célebres folhas da cinemateca.
Como diz o fantasma do Comandante em “The Ghost and Mrs. Muir”, um dos filmes da vida de Bénard (citando Keats),

“Darkling I listen; and for many a time
I have been half in love with easeful Death,
Called him soft names in many a mused rhyme,
To take into the air my quiet breath;
Now more than ever seems it rich to die,
To cease upon the midnight with no pain,
While thou art pouring forth thy soul abroad
In such an ecstasy! (…)
Adieu! adieu! thy plaintive anthem fades
Past the near meadows, over the still stream,
Up the hill-side; and now 'tis buried deep
In the next valley-glades:
Was it a vision, or a waking dream? “

Clara Pracana
Nota: os meus posts neste blog, como em outros, são da minha inteira responsabilidade, e não obrigam mais ninguém.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

O QUE É UM CONTEMPORÂNEO – A PROPÓSITO DO MAIS RECENTE LIVRO DE CARLOS AMARAL DIAS: “CARNE E LUGAR” (ALMEDINA)


Porque será que entre nós raramente há uma palavra psicanalítica a proferir sobre os assuntos que constituem a realidade externa?
Há excepções a esta regra e Carlos Amaral Dias tem sido uma delas. Inúmeros textos seus comprovam a sua preocupação em intervir no quotidiano como cidadão e como psicanalista.
A contemporaneidade é essa relação singular com o próprio tempo. É, simultâneamente, aderir e manter a distância ao próprio tempo, de uma forma que Nietzsche designa por intempestiva.
Não se trata de uma nostalgia do passado, mas de se ter a capacidade de ser acual e inactual ao mesmo tempo. Inactual por intempestivo, actual pela capacidade de perceber e agarrar o seu tempo. Não há coincidência, há diacronia. Mas uma diacronia que não é uma anacronia, é um desfazer do momento para o transformar.
Como escreve o fisófoso italiano Giorgio Agamben, “contemporâneo é aquele que olha fixamente o seu tempo, para lhe perceber, não as luzes, mas a escuridão”.
O contemporâneo interpela as trevas do presentes e olha nos olhos essa luz que não é luz, essa escuridão que permite ver e pensar.
O que Carlos Amaral Dias faz neste livro é exactamente isso: interrogar o presente para o transformar, olhando as trevas nos olhos.
O autor ordenou os vários capítulos do livro, que na sua maior parte tinham sido obecto anteriormente de comunicação oral, num curioso itinerário. Intitulou-os Carne, Verbo, Castelo, Polis, Passagem, Farol, Fogo, Mudança e Lugar.
Os capítulos surgem desta forma como lugares, como topoi de uma mitologia muito pessoal, mas a que Carlos Amaral Dias dá uma dimensão maior. É na articulação destes conceitos que a escrita de Carlos Amaral Dias cria um fulgor original, uma espécie de farol que ilumina a leitura e nos impulsiona para outras paragens.
Uma leitura imprescindível para psicanalistas e não psicanalistas. Para todos os interessados na cultura em geral.
Clara Pracana
Nota: os meus posts neste blog, como em outros, são da minha inteira responsabilidade e não obrigam mais ninguém.

quarta-feira, 13 de maio de 2009


Morreu Clement Freud, neto de Sigmund Freud

Sir Clement, neto de Freud e irmão do conhecido pintor Lucien Freud morreu no passado dia 15 de Abril, em Londres.
Foi criado em Berlim até aos nove anos, data em que o pai (filho de Sigmund Freud) se mudou para Londres. O avô, como se sabe, também foi morrer a Londres, depois de ter abandonado uma Viena que tinha sido a capital cultural da Europa e se tinha transformado no antro nazi que sabemos. Hitler tornou a vida insuportável a milhões de pessoas e os Freud não foram excepção.
Clement Freud parece ter sido um bon vivant e um homem com um particular sentido de humor. Ligado a restaurantes desde novo, foi também jornalista, por sinal o jornalista mais bem pago em Inglaterra nos anos sessenta do século passado. Foi uma figura conhecida nos jornais, rádio e televisão.Foi deputado durante anos. O título de Sir veio coroar a sua carreira política.
Durante a última guerra foi assistente do Marechal Montgomery e no final da guerra serviu de liason officer no Julgamento de Nuremberga.
Escreveu uma autobiografia: “Freud’s Ego”, além de outros livros. Foi reitor das universidades de Dundee e de St. Andrews.
Teve um bloodhood chamado Henry, com o qual fez anúncios televisivos a publicitar alimento para cães.
Teve certamente uma vida muito preenchida. Long live Sir Clement!

Clara Pracana

segunda-feira, 11 de maio de 2009

A POESIA TAMBÉM É VIDA




Um poeta: John Donne (1572-1631)

“Nenhum homem é uma ilha”. Vale a pena ler a citação na íntegra e no maravilhoso inglês de John Donne (que também escreveu poemas eróticos, quem diria):

"No man is an island, entire of itself; every man is a piece of the continent, a part of the main; if a clod be washed away by the sea, Europe is the less, as well as if a promontory were, as well as if a manor of thy friend's or of thine own were; any man's death diminishes me, because I am involved in mankind, and therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee."

Clara Pracana

Nota: os meus posts neste blog, como em outros, são da minha inteira
responsabilidade, e não obrigam mais ninguém.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

AINDA A PROPÓSITO DE ANTERO E DO COLÓQUIO EM PONTA DELGADA




Mais uma citação do poeta:
(…) este isolamento num canto mundo, que é já uma meia-morte ou uma morte antecipada (Antero de Quental, Ponta Delgada, 1887, em carta a Oliveira Martins)

Clara Pracana

Nota: os meus posts neste blog, como em outros, são da minha inteira
responsabilidade, e não obrigam mais ninguém.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Antero, o deprimido e o revolucionário





Realizou-se no passado fim de semana um seminário sobre Antero de Quental, a depressão e o suicídio, promovido pela Espassos de Vivências com a colaboração da nossa AP. Muito concorrido, foi interessante ver como é possível mobilizar tantas pessoas para o meio do Atlântico. Como Antero escreveu - "uma ilha no mar - ah! mas bem no mar!". Foi em S. Miguel que Antero se suicidou, em 1891.
Aguardo por agora os posts dos mais jovens que participaram neste colóquio - ou outros. Gostava de saber como é que eles sentiram essa experiência.
Deixo para já uma citação de Antero, sobre as célebres conferências democraticas de que ele foi fundador (conhecidas pelas conferências do Casino, por terem lugar no casino lisbonense, no actual largo Rafael Bordalo Pinheiro, em Lisboa):
"Temos um programa mas não uma doutrina; somos uma associação mas não uma igreja".

Clara Pracana

Nota: os meus posts neste blog, como em outros, são da minha inteira responsabilidade, e não obrigam mais ninguém.

Política, conflitos, democracia e psicanálise



Política, conflitos, democracia e psicanálise

Estive a ler um artigo de Adrián Liberman (www.ipa.org.uk) que me pareceu muito interessante, cuja leitura integral recomendo, e sobre o qual gostava de levantar uma discussão neste nosso blog.
O artigo começa por evocar a polarização da política (que não tenho dúvidas que na Venezuela será maior do que cá) :
“An inner world that is expressed through the fantasies of inclusion or exclusion takes on an ominous and sinister appearance when it is reinforced by the prevailing political discourse. And when this phenomenon appears on the couch we have to ask whether it can be dealt with via the familiar dynamic between projection and introjection”.
O autor prossegue afirmando que a ausência da palavra é o caminho para a loucura e a desumanização. E que a nossa tarefa como analistas/terapeutas posicanalíticos é a de restituir a palavra, ou seja, recuperar a capacidade de pensar e falar coma a estrada real para a reafirmação da lei humana.
Liberman acrescenta:

“ [the] emergence [of political conflicts] in the form of hate throws into question the practice of psychoanalysis when the latter fails to take current events into account. In principle, I believe that this situation obliges the analyst to make an open defence of democracy, especially because, in the absence of the rule of law, compliance with the fundamental rule [neutrality and abstinence] becomes meaningless.
(…) One could think of this as a kind of democratic activism both within and outside our consulting rooms. Creating such a figure would also mean that psychoanalysts return to the polis, to the public arenas which the Greeks spoke about, and thus they would return to civil action and to having a deliberate presence in the public sphere so as to complement the above. Such an intentional shift would aim to blur if not erase the artificial distinction (not to mention dissociation) between the public and the private. Hate that is constituted in culture cannot be combated merely from within the four walls of our consulting rooms with our analysands, who will always be few in number compared to society as a whole. Rather, it requires the bringing together of an ethics of commitment with the ethics of desire. Freud, it has to be said, was never against this, and in fact always viewed such an idea favourably”.

Ou seja, o que Liberman põe aqui é a questão sempre renovada da relação da psicanálise com a sociedade e a cukltura (Kultur), e do papel dos psicanalistas na cidadania, que é também um dos temas do último livro do Prof. Carlos Amaral Dias, sobre o qual em breve farei um comentário, tanto mais oportuno quanto fui eu que tive o prazer de o apresentar na cerimónia do lançamento.


Clara Pracana

Nota: os meus posts neste blog, como em outros, são da minha inteira
responsabilidade, e não obrigam mais ninguém.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Esquizoidia e Sociedade Actual por Teresa Metelo Dias

No dia 18 de Abril deste ano teve lugar o 1º Encontro da AP – Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica – cujo tema foi “Esquizoidia e Sociedade Actual”. Um tema de interesse indubitável e, tal como o próprio nome indica, bem actual. Na verdade, é preocupação do mundo “psi” (e ainda bem) o estado das coisas na sociedade, até porque esse conhecimento deverá orientar estudos, abrir perspectivas e, em último caso, ajudar na prevenção do que aí vem. E é se esse mundo “psi” quer ser moderno e virado para o outro, ou seja, não ser esquizóide.
Neste Encontro as opiniões foram divergentes, o que é bom sinal, significando que o cérebro não foi só um. O tema foi analisado sob diferentes ângulos, passando pela economia, filosofia, neurologia e, naturalmente, pela psicanálise.
Ouviram-se oradores e comentadores mais pessimistas, outros mais optimistas. O Encontro foi dinâmico e interactivo, vivo e descomplexado. Houve tempo para as perguntas, comentários e partilhas de experiências e opiniões. O público aproveitou e esteve à altura. Os conferencistas agradeceram. O Encontro não foi esquizóide.
Por não ter sido esquizóide, permitiu que todos pensassem, e que pensassem livremente, como eu, que pensei, pensei livremente e gostei de pensar. Por ter gostado de pensar e sobretudo gostado de pensar o que pensei, decidi partilhar os meus pensamentos, para não ser esquizóide.
Não cheguei a conclusões brilhantes e, como em tudo o que penso, não estou certa de estar certa. Mas, daquilo que entendi como uma das partes essenciais da conferência, formei uma opinião.
Debateu-se, entre outras coisas, o “problema” das novas tecnologias, que alguns defenderam como formas de substituição de uma comunicação fisicamente próxima, com tudo de rico que ela implica, desde a comunicação não verbal (os olhares, os gestos que traduzem mil palavras), até aos próprios cheiros.
Não tenho dúvida que isso se perde, mas será mesmo que a culpa de termos tanto esquizóide nesta nossa actual sociedade se deve ao aparecimento e divulgação das novas formas de comunicação inerentes às novas tecnologias, a saber, aos chats, e-mails, fóruns, sms e outras? Eu acho que não. Eu uso tudo isso, e não me sinto mais esquizóide, nem sequer me tornei esquizóide.
No meu entender, a esquizoidia que existe na sociedade actual não é da responsabilidade das novas tecnologias. Ninguém fica esquizóide por falar no Messenger ou por conhecer pessoas em fóruns. Antes, as novas tecnologias vieram dar um palco aos desgraçados dos esquizóides que estavam votados ao tão só e apenas seu pobre mundo interno. Provavelmente criadas por esquizóides, estas novas formas de comunicação puderam-se, sim, constituir como uma porta para o mundo exterior a muita gente. Se calhar, contribuíram para que muito esquizóide fosse um pouco menos esquizóide. Esquizóides que, de outra forma, não teriam hipótese de sair da sua esquizoidia ou até de conhecer outros esquizóides (ou mesmo outros não esquizóides).
Quanto a mim, não esquizóide, estas novas formas de tecnologia facilitam-me a vida. Dão-me jeito. Inclusivamente, falo muito mais com pessoas com quem não falaria se não fosse a ajudinha destas novas formas de comunicação. Porém, seguramente, jamais poderão substituir o convívio “ao vivo”.
Assim, o que me parece é que, actualmente, a sociedade criou um lugar para os esquizóides, não criou esquizóides. É certo que tudo seria melhor se não houvesse esquizóides, sobretudo para os próprios esquizóides, mas a vida é assim. Não se terá tornado a sociedade menos esquizóide ao dar um lugar aos esquizóides?
Por isso, no meu ponto de vista, deixemos as novas formas de comunicação em paz. Não sei se há hoje mais esquizóides que antes, o que sei é que hoje eles têm certamente mais ferramentas para saírem do seu isolamento do que antes. É a minha optimista opinião (e sei que não sou a única optimista).
Mas então, qual será o problema da sociedade actual? Falou-se também em limites e regras, sobretudo na ausência destes na educação das crianças ou então na sua imposição porque sim. Falou-se na necessidade das crianças terem regras e limites mas sobretudo na importância de compreenderam a razão da sua existência. Não dar limites e regras às crianças é negligência; impô-los porque sim é maldade.
Será que é essa distorção da importância dos limites e regras nas crianças de agora o problema vigente? Não será só, mas pelo menos é um dos. O que poderá contribuir para tal, numa altura em que os princípios da psicologia infantil até não se encontram assim tão mal difundidos como isso? Aqui sim, terão um papel os pais esquizóides ou com traços esquizóides da personalidade que, muitas vezes, à defesa, se embrenham no seu mundo profissional como desculpa, ainda que inconsciente, para fugirem às relações. Aqui, alia-se a falta de jeito (para não falar em incapacidade) destes pais em se relacionarem criativamente com os seus filhos (o que lhes permitiria contar “uma história” sempre que as regras são impostas) à mera falta de tempo que os conduz a impor e pronto, “que a mãe tem mais que fazer”. E é assim.
Serão também estes pais que apostam cegamente na eficácia dos filhos, pois que se não fossem esquizóides vê-los-iam como eles são e não como gostariam que eles fossem, já que estariam voltados para o outro e não para si próprios. Encharcam-nos de actividades para preencher, como muito bem se disse no Encontro, os “tempos mortos”, e regozijam-se das habilidades novas dos seus filhos. Também aqui a sociedade adaptou-se a estes pais esquizóides, criando esta multiplicidade de actividades para que os filhos de esquizóides tenham “com que se entreter”…
Sendo sempre recompensados pela eficácia em vez de pela espontaneidade e criatividade, que será destas crianças? Novos esquizóides? Provavelmente… Agora não me venham cá dizer que a culpa é do Messenger.
Teresa Metelo Dias

terça-feira, 21 de abril de 2009

Arte e Psicologia


Em 1533 o embaixador francês Jean de Dinteville encomendou ao pintor alemão Hans HOLBEIN o duplo retrato dele próprio e de Georges de Selve. Esta obra, talvez a mais conhecida de Holbein, é referida por Julia Kristeva numa entrevista de 1993. Nela Kristava diz apreciar muito Holbein. E diz também que todoos os retratos de Holbein são de pessoas deprimidas. Kristeva liga a depressão a uma ferida narcísica antiga que terá a ver com a impossibilidade, numa fase muito inicial da infância, de a mãe constituir um objecto.

Revejam a pintura de Holbein e os dois homens que nela figuram, conhecidos pelos “Embaixadores”. A forma oblonga, em baixo, será a de um crâneo – a lembrar a transitoriedade da vida e a inevitabilidade da morte.
Os dois homens representados têm 25 e 29 anos! Não sei o que impressiona mais, se os objectos que os rodeiam e que comunicam o amplo leque de interesses destes dois homens da Renascença, se o ar pesado, de uma gravitas que só vemos hoje em dia em pessoas de uma idade (muito) madura. Sabemos que, nos nossos dias, a adolescência se prolonga cada vez mais, nalguns casos para lá dos 30…

Clara Pracana

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Na busca da felicidade - O bom uso da lucidez

Com votos de um bom ano de 2009, deixo-vos aqui esta entrevista de Jean-Pierre Winter que me pareceu uma boa leitura para este início de ano das actividades da AP.

Ana Vasconcelos




Na busca da felicidade[1]

O bom uso da lucidez

Entrevista a Jean-Pierre Winter
[2] por Claire Fleury

Le Nouvel Observateur (NO). – Em 1999, disse nesta revista: «A psicanálise não é uma disciplina da felicidade.» Vinte anos depois, continua a afirmá-lo?

Jean-Pierre Winter. – Continuo! [Gargalhada]. Contudo, não é uma disciplina que leve, necessariamente, a se aceitar estar-se na infelicidade. De uma certa maneira, a psicanálise permite ao paciente aceitar a sua verdade. Mas não devemos iludir-nos. O acesso à verdade não é uma porta que se abre à felicidade. Lacan falava de momentos de «dessubjectivação» que acompanham o fim da análise.

N.O. – Mais vale ser-se um imbecil feliz?

J.P WinterHá, sem dúvida, mais felicidade possível na imbecilidade. Mas é aqui que eu daria uma outra nuance ao que eu disse há vinte anos. Há, no melancólico, no que sofre do que se poderia chamar de uma patologia da lucidez, uma forma de humor e de relação à vida fundada no cómico, pelo menos, tanto como no trágico. Todos conhecemos o paradoxo do palhaço triste. Faz rir toda a gente excepto ele. Os humoristas vão buscar ao seu próprio desespero de como fazer rir os outros. Um dos materiais fundamentais nos quais Freud se alicerçou para descodificar a nossa relação com o inconsciente foram, justamente, os chistes. Aliás, é curioso como se esquece que “Os chistes e a sua relação com o inconsciente” é uma das suas obras mais volumosas.

N.O. – Qual é a relação entre o riso e a felicidade?

J.-P. WinterSomos mais feliz quando rimos. Usualmente, faz bem. Mas não prova nada. Encontra-se, aliás, esta dimensão na análise.

N.O. – Pode-se rir no divã?

J.-P. WinterAbsolutamente. Podemos rir de nós próprios quando temos essa capacidade mas, também, nos momentos de emergência do inconsciente. Obviamente que isto depende do modo como o analista os releva. Mas não há nenhuma razão para fazer desses momentos uma tragédia.

N.O. – Os psicanalistas são pessoas felizes?

J.-P. WinterAlguns são, definitivamente, infelizes, sinistros. Confundem o sério com o
espírito em série, ou seja, classificam, catalogam e têm uma visão restritiva do que têm de fazer. Não metem nessa visão, nem a imaginação nem a jubilação. Mas nem todos são assim! O que sempre me tocou em Françoise Dolto, com quem longamente trabalhei, era a sua maneira de “reencantar o mundo”, usando a expressão de Marcel Gauchet. Jacques Lacan era igual. Na prática analítica, as suas interpretações eram, muitas vezes, muito divertidas. Mas ele estava investido da função de ideal do psicanalista. No início da minha análise com ele, assisti a um dos seus seminários , numa altura em que eu era, ainda, um pouco exterior a este meio. Lacan disse: « Os crustáceos com hastes são os únicos que não se masturbam.» A assistência notou esta afirmação sem se manifestar. Eu fui o único, ou quase, que me ri. Admirando-me, chamei-lhe a atenção para isto. Respondeu-me: «É mesmo esse o drama».

N.O. – Lacan era mais pessimista.

J.-P. WinterÉ verdade e Dolto mais optimista. Mas tinham, pelo menos, um ponto em comum: para eles, a psicanálise estava do lado do vivente. Nenhum psicanalista pode pretender dar a felicidade. Mas o que é certo, é que a psicanálise está do lado da vida. Depois, tudo depende de cada um. Para mim, se está do lado da vida, estou feliz. Pelo contrário, se me aborreço, acho isso “mortal”.

N.O. – Para os psicanalistas, a felicidade é suspeita?

J.-P. Winter - Sim se ela se afirma num discurso e se apresenta como uma denegação dos problemas. Pode, também, ser uma forma de indiferença ao mundo ou de imbecilidade. Mas na vida comum, se alguém mostra que está a sentir momentos de felicidade e se está consciente que a felicidade é efémera, isto não tem nada de suspeito, bem pelo contrário.

N.O. – Uma cura psicanalítica dá o direito a ser-se feliz?

J.-P. WinterSim, dá o direito de viver momentos de felicidade que são proibidos na neurose. Por exemplo, a pessoa proíbe-se de ser mais feliz do que o pai. Logo que encara a possibilidade de ser feliz nos negócios, no amor…, a pessoa sabota-se para que isso não aconteça. Há, também, as pessoas que estão sempre a queixar-se . A máquina do queixume pode representar um tal gozo inconsciente que é impensável livrar-se dele. Isto liga-se à questão do masoquismo ou, como disse tardiamente Freud, à questão da pulsão de morte. Colocar-se, constantemente, em situação de insucesso é uma tendência que todos temos. A análise permite relevar essa tendência, dar um passo para trás para se olhar a si próprio a ter essa tendência mas não, necessariamente, a satisfazê-la.

N.O. – O paciente pode encontrar-se perante o medo de deixar de sofrer?

J.-P. WinterNão o podia ter dito melhor. É a «reacção terapêutica negativa». No momento em que tudo foi, de novo, reunido na análise, para que o paciente possa abandonar os seus sintomas, em vez de o fazer, ele volta-se contra o seu analista e torna-se agressivo. Um sintoma pode colar-se à pele como uma carraça a um cão. É por isso, aliás, que os psicanalistas têm dificuldade em compreender as terapias cognitivo-comportamentais (TCC) porque se sabe a que ponto «o equilíbrio» devido aos sintomas é frágil. Privar alguém do seu sintoma pode ser perigoso.

N.O. – O que é que pode acontecer?

J.-P. WinterQuando o paciente se apercebe que, por detrás do seu sintoma, não existe nada, apenas o vazio. De qualquer forma, o vazio está sempre presente. Existe, em todos nós, um quanto de vazio. Mas é preciso poder enfrentá-lo. Mas o paciente sente, fisicamente, a vertigem. Pensa que é o vazio à sua volta que é a causa. Mas, é evidentemente, o vazio que está dentro dele que lhe faz medo. Por isso, tem um medo imenso de se livrar dos sintomas. Há, também todos os benefícios que se podiam retirar dos sintomas, como por exemplo, explorar o meio onde vive em nome da sua fobia. Por vezes, é o próprio meio envolvente que se opõe à perda do sintoma.

N.O. - Evocou as TCC. Os seus partidários criticam à psicanálise de esgaravatar onde faz
doer, de mergulhar nos meandros do passado em vez de ajudar simplesmente o paciente a ir melhor.

J.-P. Winter Não é por não desenterrar as coisas que elas deixam de existir e de produzir os seus efeitos de deterioração. É aqui que existe um mal entendido. Na psicanálise, a questão não é desenterrar o que foi enterrado mas o que foi mal enterrado. A finalidade de uma psicanálise não é de se recordar para se recordar, é de se recordar para, finalmente, esquecer.

N.O. – Uma cura psicanalítica é uma conquista da liberdade interior?

J.-P. Winter É uma conquista do corpo. A psicanálise não separa o corpo do espírito, ambos caminham em conjunto. Esta conquista dá o sentimento de uma muito maior liberdade interior porque a pessoa reapropria-se das partes do seu corpo que até então estavam mortas. O toque, o ouvido, a visão, o paladar…não funcionavam antes da análise. Depois, a pessoa reapropria-se deles na acção, pintando, fazendo um filho, investindo-se no seu trabalho. A energia que, na neurose, estava ao serviço da mortificação de uma parte de si, é posta em liberdade para outra coisa.

N.O.- Uma análise conseguida, é, também, a promoção do livre arbítrio?

J.-P- WinterNa neurose, a pessoa proíbe-se de julgar as pessoas tutelares. O neurótico não pode dizer a si próprio; « Isto é bom para mim, aquilo não é.» ou « O importante é o que eu desejo e não o que o meu pai deseja.». Se a pessoa pode dizer «a minha mãe sofre mas não é por minha causa, mesmo se ela mo repetiu durante vinte anos» faz um juízo crítico. O importante é a questão da culpabilidade. O que a psicanálise pode dar, é a pessoa separar-se do desejo dos mais próximos sem culpabilidade. «Eu desenrasco-me com a minha história.»

N.O. – Hoje, sofre-se de menos proibições. É-se mais feliz?

J.-P. WinterLacan dizia que se se encontrasse o que se pedia, estar-se-ia «em falta da falta». A sociedade de consumo é muito angustiante porque ela responde à necessidade mas não ao desejo. Um pouco como uma mãe que responderia sempre, ao seu bebé, dando-lhe de mamar. Mas não é isso que o bebé deseja! Vivemos numa sociedade «em falta da falta».

N.O. – Estamos quase no Natal.

J.-P. WinterQuando uma criança pede um bombom, em vez de lho dar, Dolto dizia que se devia falar-lhe do bombom. Com certeza que não é para tomar à letra. O que ela queria dizer era que, se não se fizesse assim, estava-se a privar a criança de todo um imaginário. Tem de se lhe permitir que ela possa fantasmizar à volta do seu desejo. Hoje, os jovens pedem consolas de jogos para o Natal. Consolas e mais consolas! O que nos leva a crer que eles têm todos necessidade de serem consolados!


[1] A partir da entrevista inserida no dossier , “A la poursuite du bonheur”, in Le nouvel Observateur, nº2303-2304, 24 Dezembro 2008- 7 de Janeiro2009 .
[2] Psicanalista, antigo aluno de Jacques Lacan.